A adoção de uma dieta vegana tem se tornado cada vez mais popular em todo o mundo, impulsionada por preocupações éticas, ambientais e de saúde. No Brasil, esse movimento não é diferente. Segundo dados da Sociedade Vegetariana Brasileira, entre 2012 e 2018, houve um impressionante aumento de 75% no número de pessoas que optam por excluir produtos de origem animal de sua alimentação. Este crescimento significativo tem levantado questões importantes sobre a qualidade nutricional dessa dieta, especialmente quando se trata do consumo adequado de proteínas e aminoácidos essenciais necessários para o bom funcionamento do organismo.
Uma das principais dúvidas que paira sobre a alimentação vegana é se é possível obter todas as proteínas necessárias sem recorrer a produtos ultraprocessados. Essa questão ganhou ainda mais relevância com a publicação de um estudo conduzido pela Universidade de São Paulo (USP), que investigou os hábitos alimentares de 774 pessoas veganas. A pesquisa, publicada no respeitado periódico Jama Network Open, trouxe revelações surpreendentes sobre como os adeptos dessa dieta estão conseguindo (ou não) atingir suas necessidades proteicas diárias e qual o papel dos alimentos ultraprocessados nesse contexto. Entender essas dinâmicas é fundamental não apenas para quem já segue o veganismo, mas também para aqueles que consideram fazer essa transição alimentar.
O que revelou o estudo da USP sobre a alimentação vegana
O estudo liderado pelo nutricionista e fisiologista clínico do exercício Hamilton Roschel na USP analisou minuciosamente a ingestão alimentar de 774 indivíduos veganos. Utilizando um recordatório alimentar detalhado, os pesquisadores conseguiram não apenas quantificar os nutrientes consumidos, mas também avaliar a contribuição calórica por grau de processamento dos alimentos. Esta metodologia permitiu classificar os alimentos em três categorias principais: in natura e minimamente processados, processados e ultraprocessados.
Os resultados trouxeram dados interessantes: a maioria dos participantes consegue atender às recomendações de ingestão de proteínas e aminoácidos essenciais em sua dieta cotidiana. Além disso, aproximadamente 66% das calorias diárias ingeridas pelos veganos provêm de alimentos in natura ou minimamente processados, o que demonstra uma preferência por escolhas alimentares mais naturais e menos industrializadas. Este é um dado positivo, considerando que alimentos menos processados geralmente oferecem um perfil nutricional superior e menos aditivos potencialmente prejudiciais.
No entanto, um dos achados mais importantes do estudo foi que os participantes que consumiam menos ultraprocessados eram mais propensos a não atingir as recomendações diárias de proteínas. Isso sugere que, para muitos veganos, esses produtos desempenham um papel significativo na garantia do aporte proteico adequado. Entre os principais ultraprocessados consumidos pelos participantes estavam a proteína texturizada de soja e os suplementos proteicos à base de plantas, além de substitutos de produtos cárneos como hambúrgueres e linguiças veganas.
A nutricionista vegana do Espaço Einstein, explica que esses resultados fazem sentido: “Fontes vegetais integrais, embora ricas em nutrientes, podem ter uma densidade proteica mais baixa em relação às de fonte animal, exigindo porções maiores para alcançar as metas nutricionais.” Esta realidade coloca muitos veganos diante de uma escolha entre consumir grandes volumes de alimentos integrais ou recorrer a alternativas mais concentradas em proteínas, mas mais processadas.
O dilema dos ultraprocessados na dieta vegana
Os alimentos ultraprocessados têm sido alvo de crescente preocupação na comunidade científica devido a seus potenciais efeitos negativos para a saúde. Caracterizados por altos teores de açúcar, sódio, gorduras e diversos aditivos químicos, esses produtos têm sido associados ao aumento dos casos de obesidade, diabetes, câncer e outras doenças crônicas não transmissíveis. No entanto, no contexto de uma dieta vegana, alguns ultraprocessados parecem desempenhar um papel diferenciado.
Como observa Hamilton Roschel, não há evidências de que produtos como a proteína texturizada de soja e os suplementos à base de plantas causem os mesmos efeitos deletérios à saúde que os ultraprocessados típicos, como salgadinhos, biscoitos recheados e bebidas prontas açucaradas. Isso sugere que pode haver uma hierarquia entre os próprios ultraprocessados, com alguns oferecendo perfis nutricionais relativamente melhores que outros.
Em sua prática clínica, a nutricionista vegetariana tem observado um fenômeno interessante: “Muitos pacientes veganos recorrem a ultraprocessados para garantir seu aporte proteico, especialmente aqueles que buscam praticidade no dia a dia”. Este comportamento é compreensível em um contexto social que valoriza a rapidez e a conveniência, onde o tempo para preparar refeições elaboradas é cada vez mais escasso.
Os substitutos de produtos cárneos, como bifes, hambúrgueres e linguiças veganas, são frequentemente consumidos por indivíduos em transição para o veganismo ou por aqueles que sentem falta da textura e do sabor dos alimentos de origem animal. No entanto, esses produtos costumam apresentar um perfil nutricional desbalanceado, com excesso de sódio, gorduras adicionadas e diversos aditivos. O consumo habitual e em grandes quantidades pode, portanto, trazer implicações negativas para a saúde cardiovascular e metabólica.
Alternativas naturais e estratégias para uma dieta vegana equilibrada
Felizmente, existem diversas alternativas para garantir um adequado aporte proteico em uma dieta vegana sem depender excessivamente de ultraprocessados. Uma alimentação mais natural, baseada em ingredientes minimamente processados, pode oferecer não apenas proteínas de qualidade, mas também um complexo de outros nutrientes essenciais, como vitaminas, minerais e fibras.
As leguminosas são consideradas a base proteica de uma dieta vegana equilibrada. Feijões, lentilhas, grão-de-bico, ervilhas e favas são excelentes fontes de proteínas, ferro e fibras. O tofu e o tempeh, derivados da soja menos processados que a proteína texturizada, oferecem versatilidade culinária e alta densidade proteica. Além disso, as oleaginosas (castanhas, nozes, amêndoas) e sementes (chia, linhaça, abóbora) complementam o aporte de proteínas e fornecem gorduras saudáveis.
A farinha de grão-de-bico, a levedura nutricional (rica em vitaminas do complexo B), as algas marinhas (como a spirulina e a clorela) e os vegetais verde-escuros também são importantes aliados na composição de uma dieta vegana nutricionalmente adequada. Esses alimentos não apenas contribuem para o aporte proteico, mas também fornecem nutrientes frequentemente críticos em dietas veganas, como o ferro, o zinco, o cálcio e a vitamina B12.
Uma estratégia fundamental na alimentação vegana é a combinação de diferentes fontes vegetais ao longo do dia. Isso porque as proteínas vegetais geralmente não contêm todos os aminoácidos essenciais nas proporções ideais (com exceção da soja, quinoa e amaranto, que são consideradas proteínas completas). Ao combinar, por exemplo, cereais com leguminosas (arroz com feijão, trigo com grão-de-bico), obtém-se um perfil completo de aminoácidos essenciais.
Como ressalta a nutricionista vegana, “O objetivo é incentivar um consumo mais equilibrado, reduzindo a dependência dos ultraprocessados sem ignorar completamente seu papel em uma rotina vegana moderna”. Essa abordagem pragmática reconhece os desafios da vida contemporânea sem comprometer os princípios nutricionais fundamentais.
Dicas práticas para escolher alimentos veganos mais saudáveis
Para aqueles que seguem uma dieta vegana e ocasionalmente incluem ultraprocessados em suas refeições, existem critérios importantes a serem considerados para fazer escolhas mais inteligentes. Estas dicas podem ajudar a selecionar produtos com melhor perfil nutricional:
1. Priorize produtos com listas de ingredientes curtas e simples: Quanto mais curta a lista, geralmente mais próximo o alimento está de sua forma natural. Busque produtos em que ingredientes como soja, ervilha e grão-de-bico apareçam entre os primeiros itens, indicando serem componentes principais. Evite aqueles com muitos nomes desconhecidos ou complicados, que sugerem alto nível de processamento.
2. Fique atento ao conteúdo de sódio: Os ultraprocessados frequentemente contêm níveis elevados de sódio para conservação e realce de sabor. O consumo excessivo deste mineral está associado a problemas como hipertensão e risco aumentado de doenças cardiovasculares. Opte por versões com menor teor de sódio quando disponíveis.
3. Analise cuidadosamente o perfil de gorduras: Verifique não apenas a quantidade total de gorduras, mas também sua qualidade. Evite produtos com gorduras trans e busque aqueles com menor teor de gorduras saturadas. Presença de gorduras insaturadas, provenientes de ingredientes como azeite e oleaginosas, é um ponto positivo.
4. Valorize alimentos ricos em fibras: Muitos ultraprocessados perdem seu conteúdo de fibras durante o processo de fabricação. Produtos que mantêm boas quantidades deste nutriente geralmente são mais benéficos para a saúde digestiva e o controle glicêmico.
5. Prefira alimentos fortificados com vitaminas e minerais: Para veganos, produtos fortificados com vitamina B12, ferro, cálcio e vitamina D podem ser especialmente úteis, pois esses nutrientes são naturalmente mais difíceis de se obter em uma dieta baseada exclusivamente em plantas.
6. Controle o consumo de açúcar: Tenha cuidado com açúcares ocultos e evite produtos com alto teor de açúcar adicionado. Muitos ultraprocessados contêm diferentes tipos de açúcares e xaropes para melhorar o sabor, mas que podem contribuir para problemas metabólicos.
7. Lembre-se que nem todos os ultraprocessados são iguais: Compare diferentes marcas e opções, analisando criticamente as tabelas nutricionais. Mesmo dentro da categoria de ultraprocessados, existem produtos com perfis nutricionais significativamente melhores que outros.
Conclusão: encontrando o equilíbrio na alimentação vegana
O estudo da USP traz uma importante contribuição para a compreensão da relação entre veganismo, consumo proteico e alimentos ultraprocessados. Seus resultados demonstram que é perfeitamente possível atingir as necessidades diárias de proteínas e aminoácidos essenciais seguindo uma dieta exclusivamente vegetal. No entanto, também evidencia um paradoxo interessante: para alguns veganos, os ultraprocessados desempenham um papel significativo na garantia desse aporte proteico adequado.
O ideal é buscar um equilíbrio que priorize alimentos integrais, frescos e minimamente processados, usando os ultraprocessados com moderação e critério. As leguminosas, os derivados menos processados da soja (como tofu e tempeh), as oleaginosas, os cereais integrais e as sementes devem formar a base da alimentação, complementados por uma ampla variedade de frutas, verduras e legumes. Quando o consumo de ultraprocessados for necessário, seja por conveniência ou preferência, é fundamental fazer escolhas conscientes, analisando criticamente rótulos e composição nutricional.
É importante ressaltar que uma dieta vegana adequadamente planejada pode oferecer todos os nutrientes necessários para a saúde e o bem-estar em qualquer fase da vida. No entanto, o acompanhamento por uma nutricionista vegetariana especializada é fundamental para garantir que todas as necessidades nutricionais sejam atendidas, especialmente em grupos com necessidades específicas, como gestantes, crianças e idosos.
Em última análise, a qualidade de uma dieta vegana não depende apenas do que se exclui (produtos de origem animal), mas principalmente do que se inclui em seu lugar. Um veganismo nutritivo e sustentável a longo prazo é aquele baseado em escolhas alimentares conscientes, diversificadas e adaptadas às necessidades individuais de cada pessoa.
Referências:
- Estudo da USP publicado no Jama Network Open: https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen
- Sociedade Vegetariana Brasileira: https://www.svb.org.br/
- Hospital Israelita Albert Einstein – Espaço Einstein: https://www.einstein.br/