O universo da saúde feminina é complexo e repleto de condições que, infelizmente, ainda permanecem silenciadas ou pouco discutidas em nossa sociedade. Entre essas condições, a endometriose se destaca como uma doença crônica que afeta milhares de mulheres no Brasil e no mundo. Esta condição é caracterizada por um fenômeno atípico: as células do endométrio (tecido que reveste o útero internamente) crescem fora do útero, implantando-se em outros órgãos como ovários, trompas, intestinos e até mesmo na bexiga. Durante o ciclo menstrual, essas células respondem aos hormônios da mesma maneira que o tecido uterino, causando sangramento e inflamação em locais onde não deveriam estar.
Segundo dados do Ministério da Saúde, estima-se que uma a cada dez mulheres sofra com os sintomas da endometriose sem conhecer a existência da doença. Esta estatística alarmante revela um cenário preocupante: muitas mulheres convivem com dores intensas e incapacitantes mensalmente, acreditando ser apenas parte natural do ciclo feminino. Em 2021, mais de 26,4 mil atendimentos foram realizados no Sistema Único de Saúde (SUS) relacionados à endometriose, resultando em aproximadamente 8 mil internações na rede pública. Neste artigo, vamos mergulhar profundamente no tema, explorando desde os primeiros sinais de alerta até as opções de tratamento disponíveis, sempre com o objetivo de informar e conscientizar sobre esta condição que afeta tantas mulheres em idade reprodutiva.
Sintomas da Endometriose: Quando Suspeitar
A identificação precoce da endometriose é fundamental para evitar o agravamento da condição e proporcionar qualidade de vida às pacientes. O principal sintoma, presente em cerca de 90% dos casos, é a dismenorreia – nome técnico para as cólicas menstruais intensas. Diferentemente das cólicas consideradas normais, as dores causadas pela endometriose tendem a ser progressivas e incapacitantes, podendo até mesmo levar a afastamentos do trabalho ou atividades cotidianas.
O cirurgião ginecologista Roberto Carvalhosa, com 44 anos de experiência na rede pública de saúde do Rio de Janeiro, explica que as pacientes geralmente apresentam “cólicas menstruais que se iniciam de forma mais branda até se tornarem severas”. Muitas vezes, esses sintomas aparecem logo na primeira menstruação, mas são negligenciados ou minimizados, tanto pela própria mulher quanto por pessoas ao seu redor, com frases como “toda mulher sente cólica” ou “quando você casar e tiver relação, isso vai passar”.
Além das cólicas intensas, outros sintomas da endometriose incluem:
- Dispareunia – dor durante as relações sexuais, especialmente em posições que envolvem penetração profunda;
- Dor pélvica crônica – que persiste mesmo fora do período menstrual;
- Infertilidade – dificuldade para engravidar mesmo após tentativas constantes;
- Alterações intestinais ou urinárias durante o período menstrual – como diarreia, constipação ou sensação de inflamação na bexiga;
- Fadiga crônica – cansaço excessivo, especialmente durante o período menstrual.
Mônica Vieira, estudante universitária de 25 anos que convive com a endometriose desde os 14 anos, compartilha sua experiência: “A endometriose é comum entre as mulheres, em parte porque temos uma cultura social de menosprezar a dor, adiar, dizer que é comum sentir esse desconforto todo mês durante toda a vida, mas não deve ser assim e esse pensamento atrasa o diagnóstico”.
Diagnosticando a Endometriose: Um Desafio Médico
Um dos aspectos mais preocupantes relacionados à endometriose é o tempo médio para o diagnóstico: entre 7 e 9 anos desde o início dos sintomas. Este atraso ocorre por diversos fatores, incluindo a normalização da dor menstrual na sociedade e a complexidade do diagnóstico em si.
Segundo o Dr. Carvalhosa, o diagnóstico da endometriose é primariamente clínico, baseado em uma anamnese detalhada (entrevista médica) e exame físico minucioso. “Se a gente faz uma anamnese rigorosa, a gente pode chegar a uma suspeita quase correta da doença, em torno de 78% a 80%. Se você complementar a sua anamnese precisa, com um exame clínico rigoroso, você pode chegar praticamente de 95% a 98% de suspeita correta do diagnóstico”, afirma o especialista.
O exame ginecológico, especialmente o exame de toque, é fundamental para a identificação da endometriose profunda. Após a suspeita clínica, exames complementares podem ser solicitados para confirmar o diagnóstico e avaliar a extensão da doença:
- Ultrassonografia transvaginal – especialmente com preparo intestinal, que permite visualizar focos de endometriose em diversos órgãos;
- Ressonância magnética da pelve – oferece imagens detalhadas dos órgãos pélvicos;
- Videolaparoscopia – procedimento cirúrgico minimamente invasivo que permite visualizar diretamente os focos de endometriose e, se necessário, já realizar a remoção.
O médico ressalta uma tendência preocupante na prática médica atual: “Hoje em dia, o que a gente vê são os profissionais tendo uma tendência maior aos chamados exames complementares, que são ressonância, ultrassonografia, tomografia, em vez de fazer inicialmente um exame clínico adequado. Muitas vezes, o profissional não usa os critérios necessários ao exame clínico.”
Tratamentos Disponíveis para Endometriose
O tratamento da endometriose deve ser individualizado, considerando a idade da paciente, o desejo de gravidez, a gravidade dos sintomas e a extensão da doença. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece atendimento completo para pacientes com endometriose, desde o diagnóstico nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) até cirurgias mais complexas em hospitais de referência.
As abordagens terapêuticas incluem:
1. Tratamento Medicamentoso:
- Anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) – ajudam a controlar a dor e a inflamação;
- Tratamento hormonal – incluindo anticoncepcionais orais, progestágenos, análogos do GnRH e dispositivos intrauterinos com liberação de hormônios, que visam reduzir os níveis de estrogênio e suprimir a menstruação;
- Analgésicos – para controle da dor nos casos mais intensos.
2. Tratamento Cirúrgico:
- Videolaparoscopia – procedimento minimamente invasivo que permite remover os focos de endometriose preservando a fertilidade;
- Cirurgias mais extensas – em casos avançados, podem envolver equipes multidisciplinares incluindo cirurgiões ginecológicos, coloproctologistas e urologistas.
3. Abordagens Complementares:
- Fisioterapia pélvica – auxiliando na redução da dor e melhora da qualidade de vida;
- Acompanhamento psicológico – considerando o impacto emocional da doença;
- Acupuntura – como adjuvante no controle da dor;
- Acompanhamento com nutricionista para endometriose – implementando mudanças alimentares que podem auxiliar no controle da inflamação.
Mônica Vieira compartilha sua experiência com abordagens complementares: “O que eu faço é por meio da ginecologia natural, remédios manipulados com substâncias anti-inflamatórias naturais como a cúrcuma, também conhecida como açafrão-da-terra. Eu também não uso hormônios e mudei meus hábitos de vida, porque entendo a saúde de forma integrada.”
O Papel da Nutrição no Controle da Endometriose
Estudos recentes têm demonstrado a importância da alimentação no manejo dos sintomas da endometriose. A inflamação crônica é um componente central da doença, e certos alimentos podem intensificar ou reduzir este processo inflamatório. O acompanhamento com um nutricionista endometriose especializado pode trazer benefícios significativos para as pacientes.
Algumas estratégias nutricionais que podem ser benéficas incluem:
- Dieta anti-inflamatória – rica em ômega-3, antioxidantes e fibras;
- Redução de alimentos pró-inflamatórios – como carnes vermelhas, alimentos ultraprocessados, açúcares refinados e gorduras trans;
- Aumento da ingestão de frutas, vegetais e grãos integrais – que fornecem nutrientes essenciais e compostos bioativos;
- Consumo moderado de soja e derivados – por seu conteúdo de fitoestrógenos que podem influenciar o equilíbrio hormonal;
- Atenção a possíveis sensibilidades alimentares – como glúten e laticínios, que em algumas pacientes podem agravar sintomas inflamatórios.
É importante ressaltar que não existe uma dieta padrão para todas as pacientes com endometriose. Cada organismo responde de maneira única, e o acompanhamento individualizado com um nutricionista para endometriose é fundamental para identificar quais estratégias alimentares funcionam melhor para cada caso.
Impacto Psicológico e Social da Endometriose
A endometriose vai muito além dos sintomas físicos. Como ressalta o Dr. Carvalhosa: “É um sofrimento psicológico, ela perde a capacidade de trabalho, perde a capacidade de ter um filho que ela tanto desejou. É uma doença muito grave, apesar de ser benigna.”
O impacto da endometriose na qualidade de vida das mulheres afetadas é multidimensional:
- Esfera profissional – absenteísmo, redução de produtividade e até mesmo abandono da carreira devido às dores incapacitantes;
- Relacionamentos – a dor durante as relações sexuais pode afetar a intimidade dos casais;
- Saúde mental – maior incidência de ansiedade, depressão e outros transtornos psicológicos;
- Projetos de vida – especialmente quando a infertilidade é uma consequência da doença;
- Aspectos financeiros – gastos com tratamentos, medicamentos e perda de dias de trabalho.
Por isso, o acompanhamento psicológico é parte fundamental do tratamento integral. Grupos de apoio, terapia individual e o suporte familiar também desempenham papéis importantes no enfrentamento da doença.
Conscientização e Diagnóstico Precoce: O Caminho para o Controle da Endometriose
O mês de março é marcado pela campanha de conscientização sobre a endometriose, conhecida como Março Amarelo da Endometriose. Esta iniciativa visa disseminar informações sobre a doença, seus sintomas e a importância do diagnóstico precoce.
A desinformação e a normalização da dor menstrual são grandes obstáculos no combate à endometriose. Como afirma Mônica Vieira: “temos uma cultura social de menosprezar a dor, adiar, dizer que é comum sentir esse desconforto todo mês durante toda a vida, mas não deve ser assim e esse pensamento atrasa o diagnóstico”.
Alguns sinais de alerta que não devem ser ignorados incluem:
- Cólicas que interferem nas atividades normais – quando a dor é tão intensa que impede a mulher de estudar, trabalhar ou realizar tarefas cotidianas;
- Dor que não melhora com analgésicos comuns;
- Sangramento menstrual muito intenso ou que dura mais de 7 dias;
- Alterações intestinais ou urinárias que coincidem com o período menstrual;
- Dor durante as relações sexuais, especialmente em posições com penetração profunda;
- Dificuldade para engravidar após tentativas constantes.
É fundamental que as mulheres que apresentam esses sintomas busquem atendimento médico especializado. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece desde o atendimento inicial nas Unidades Básicas de Saúde até o tratamento cirúrgico em hospitais de referência.
Conclusão: Enfrentando a Endometriose com Conhecimento e Apoio
A endometriose é uma condição complexa que afeta milhares de mulheres brasileiras, muitas vezes silenciosamente por anos antes do diagnóstico correto. Apesar dos desafios, o cenário atual apresenta avanços significativos tanto no diagnóstico quanto no tratamento desta condição.
O primeiro e mais importante passo é a conscientização – dor menstrual intensa e incapacitante não é normal e não deve ser aceita como parte natural da vida feminina. O segundo passo é buscar ajuda médica especializada ao primeiro sinal de alerta, preferencialmente com um ginecologista que tenha experiência com endometriose.
O tratamento deve ser multidisciplinar, envolvendo não apenas a abordagem medicamentosa ou cirúrgica, mas também o suporte psicológico, fisioterapêutico e nutricional. O acompanhamento com um nutricionista endometriose especializado pode trazer benefícios significativos através de estratégias alimentares anti-inflamatórias.
Como enfatiza o Dr. Carvalhosa, apesar de ser uma doença benigna, a endometriose pode ter um impacto devastador na qualidade de vida das mulheres afetadas. Por isso, o diagnóstico precoce e o tratamento adequado são fundamentais para minimizar os danos e permitir que as pacientes levem uma vida plena e sem limitações impostas pela dor.
A endometriose ainda é um desafio para a medicina moderna, mas com informação de qualidade, acesso aos serviços de saúde e uma abordagem integral e humanizada, é possível controlar os sintomas e proporcionar qualidade de vida às mulheres que convivem com esta condição.
Fontes:
- Ministério da Saúde. “Endometriose”. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/endometriose/